24 de jul. de 2012

Guerras, dedicação e a vida acadêmica

Nesse último mês, assisti - em velocidade procrastinadamente impressionante - o seriado Chinês chamado "Os três reinos" (em mandarim, 三国, san guo), baseado na obra de Luo Guanzhong "Romance dos Três Reinos", escrita no século XIV; e nos "Registros dos Três Reinos", texto do século III compilado por Chen Shou. A série é uma das várias adaptações midiáticas desse período histórico da China, e foi produzida com um dos maiores orçamentos da história (aproximadamente 30 milhões de dólares americanos). É realmente uma obra gigante, com 95 episódios, excelente figurino e ótimos atores.

A história começa na Rebelião dos turbantes amarelos, uma revolta civil contra o reinado do imperador Ling, da dinastia Han no final do século II. Nessa época, segundo contam os registros históricos, a dinastia Han - que até então durara 400 anos - estava em declínio devido à incompetência administrativa de seus oficiais. A rebelião foi apaziguada pelas forças imperiais, mas por causa das longas batalhas, grande parte da população estava descontente, e a descentralização do poder foi inevitável. O Império se fragmentou nas mãos de lordes regionais e deu-se início à guerra para reunificação chinesa. Nessa confusão, três grandes domínios destacaram-se e emergiram após várias batalhas e unificações regionais: Wei, ao norte (liderado pela dinastia Cao-Wei); Shu, a oeste (liderado pela dinastia Han-Shu); e Wu ao sul (comandado pela família Sun). Esses três reinos chegam a um equilíbrio de forças que durou dos anos 220 a 263, quando Wei dominou Shu e, posteriormente, Wu; dando início à dinastia Jing (que também não durou muito, diga-se de passagem).

Dentre os vários personagens e as várias histórias paralelas, uma das que me chamou mais atenção foi a do estrategista e intelectual Zhuge Liang (諸葛亮), também conhecido como Dragão Adormecido. Segundo a história, ele viveu grande período de sua vida como recluso, dedicando-se a atividades agrárias simples e ao estudo das artes e das guerras. Aparentemente, sua fama espalhou-se pelos reinos e vários lordes tentaram usá-lo a seu serviço, mas ele apenas aceitou servir a um deles (Liu Bei), e mesmo assim foram necessárias três visitas do lorde à sua cabana na floresta para convencê-lo.

Um dos pontos que mais me chamou a atenção foi no final da série. Após a morte de Liu Bei - então imperador do reino Han-Shu - seu filho Liu Shan assumiu o trono, e Zhuge Liang continuou prestando seus serviços ao estado e lutando pelo objetivo de Liu Bei (reunificar o reino e re-estabelecer a dinastia Han). Durante sua última invasão a Wei, o estrategista e comandante geral do exército Wei (o grande Sima Yi) obteve sucesso em um estratagema que semeou contenda na corte Han-Shu, e um dos principais conselheiros do imperador Liu Shan começou a suspeitar das atitudes de Zhuge Liang. Com isso, o imperador viu-se forçado a chamar Zhuge Liang de volta à capital para prestar esclarecimentos. Uma vez desmascarado o plano de Sima Yi, o conselheiro do imperador foi detido e mandado de volta à sua pequena vila no interior do reino Shu. Enquanto voltava para o campo de batalha, Zhuge Liang conversava com Li Fu, filho do conselheiro, que lhe disse que seu pai estava bastante feliz por poder voltar à sua terra e a uma vida simples de plantar, colher, e aproveitar a vida em paz.

 


Zhuge Liang para pensativo (6:05 do vídeo) e responde com pesar: "Ah, como eu o invejo! Como eu gostaria de poder voltar à minha velha cabana e às minhas atividades simples do dia-a-dia!"

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Nossas vidas são um paradoxo. Dedicação muitas (e na maioria das) vezes envolve sacrifícios. O caminho que escolhemos nem sempre nos agrada, nem sempre nos faz feliz; e não raro paramos para considerar como teria sido se tivéssemos, ao invés, escolhido outro caminho. O fantasma do "e se" assombra no mínimo 99.9% das pessoas do mundo, pelo menos uma vez na vida. Lembro-me sempre de uma frase que li em algum momento que dizia algo nas linhas de "o caminho mais árduo traz as melhores recompensas". Por um longo tempo, acreditar nisso foi a motivação da minha carreira; mas hoje em dia vejo essa crença como algo tolo e superficial. Voltando ao seriado, o aspecto que mais me interessou é que não são os "mocinhos" que ganham, mas os vilões. Apesar de todo o esforço, de toda a dedicação de Zhuge Liang, Liu Bei e os demais, a dinastia Han caiu para nunca mais voltar. Nem sempre dedicação e esforço têm resultados positivos a curto prazo, e nem sempre o maior esforço leva à melhor vitória. Reescrevendo aquela frase, "o caminho mais árduo nem sempre traz as melhores recompensas." E não faz mal! Apesar de não terem obtido sucesso, com certeza Liu Bei e Zhuge Liang morreram de consciência tranquila por terem seguido seus ideais e terem lutado até o fim. O sucesso de verdade não é algo que se mede apenas pelos resultados, mas pela jornada como um todo. Nem sempre é possível conquistar todos os sonhos; e nem sempre é possível obter os resultados que se espera. Isso te faz um perdedor? Depende do ponto de vista.

A ciência é cheia de todos os tipos de exemplo no que diz respeito a dedicação e à carreira acadêmica. Interessante observar que as vidas dos maiores cientistas nunca foram fáceis. Antigamente, havia guerras e pestes, o que tornava a vida bem mais complicada. Curiosamente, eram nesses momentos difíceis que as maiores descobertas surgiam. Schrödinger, por exemplo, sofria de tuberculose e passou por vários episódios de internação. Foi justamente durante um desses que desenvolveu sua famosa equação da descrição energética de estados quânticos. Max Planck, um dos pais da mecânica quântica, disse que propôs a quantização da energia (até então tratada como um continuum pelo paradigma newtoniano) num golpe de desespero. Em seus últimos anos, ele mesmo era contrário à teoria quântica (junto com Einstein, Schrödinger e outros famosos físicos da época), que viu florescer. Como ele mesmo dizia: 
"A new scientific truth does not triumph by convincing its opponents and making them see the light, but rather because its opponents eventually die, and a new generation grows up that is familiar with it." Outro exemplo interessante é o do químico judeu-alemão Fritz Haber. Ele ganhou o prêmio Nobel por desenvolver o processo de síntese da amônia, mas o aplicou de maneira bastante duvidosa. Haber foi o cabeça do desenvolvimento das primeiras armas químicas, durante a Primeira Guerra Mundial. Sua esposa, também química (Clara Immerwahr), suicidou-se com a pistola de seu marido em reprovação à sua atitude detestável. Na mesma manhã de seu suicídio, Haber foi ao campo de batalha para colocar sua arma química em prática. Haber apoiava o regime nazista e dedicou-se ao extremo para apagar todos os traços de sua ascendência judia; porém apesar de toda sua cooperação e de seu Nobel, o regime Nazi o expulsou da Alemanha. Seus experimentos e suas descobertas foram usados para desenvolver o mesmo gás utilizado nas câmaras de extermínio dos campos de concentração alemães. Haber é um exemplo do paradoxo acadêmico: apesar de seu caráter nacionalista duvidoso (ele disse: "em tempos de paz, os cientistas pertencem ao mundo; mas em tempos de guerra, eles pertencem à sua nação."), é graças a ele que temos acesso a fertilizantes e herbicidas, sem os quais a agricultura dificilmente teria permitido a oferta de alimentos que temos hoje.

Dedicação e esforço, particularmente na vida acadêmica, raramente andam junto com o senso comum de felicidade. A grande maioria dos cientistas famosos teve uma vida pessoal totalmente confusa; marcada por relacionamentos instáveis e personalidades excêntricas. Alguns, como Boltzmann, acabaram suicidando-se. Por vezes, anos de dedicação a uma hipótese terminam em fracasso; e há casos em que apenas anos após sua morte é que a teoria de um cientista é provada. A vida acadêmica é um caminho bastante solitário, na verdade. A maioria das hipóteses  são como sonhos de crianças. São coloridas, felizes, maravilhosas; mas raramente se provam reais. Poucas pessoas compreendem a jornada acadêmica: os anos - frequentemente miseráveis - de dedicação e estudo que te levam de volta à universidade. Para chegar a uma posição de professor assistente (o primeiro cargo acadêmico numa universidade grande), é necessário no mínimo 10 anos de estudo além do ensino médio; e o salário não é muito maior do que o de um engenheiro recém-formado (e infinitamente menor do que cargos públicos concursados em Brasília). Uma formação mais completa frequentemente envolve anos de estudo no exterior, longe da família, longe dos amigos e longe da vida na terra natal. A vida passa, os amigos se casam, têm filhos, compram carros e casas; os ex-amores arrumam novos amores, e o mundo vai girando, enquanto o aspirante-a-acadêmico continua sua relação de amor solitário com suas teses e teorias em algum canto do mundo. E isso para quê? Não é por fama, nem por gana. Cientista raramente fica famoso e muito menos rico. Isso é pela paixão pelo conhecimento, por poder dar uma contribuição, por mínima que seja, ao mundo. É, de novo, como sonho de criança. É querer tornar esses sonhos possíveis.

Parafraseando Zhuge Liang: às vezes dá uma inveja daqueles que levam uma vidinha tranquila, com sua casinha, sua família, trabalhando só por ter o que comer e beber; satisfeitos com o mundinho pequeno e a vida comum em redor...

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