"Mas aos que sofrem, Ele os livra em meio ao sofrimento; em sua aflição Ele lhes fala." (Jó 36:15)
"Disse o Senhor: 'De fato tenho visto a opressão sobre o meu povo no Egito, tenho escutado o seu clamor, por causa dos seus feitores, e sei quanto eles estão sofrendo. Por isso, desci para livrá-los das mãos dos egípcios e tirá-los daqui para uma terra boa e vasta, onde manam leite e mel (...)'" (Ex 3:7-8)
Quando procuramos por sofrimento na Bíblia, nos deparamos com uma vastidão de material para estudar. De fato, se pudéssemos visualizar em imagens e ouvir o Velho Testamento (VT), provavelmente não seria algo muito diferente de rios de sangue e súplicas desesperadas (seria como assistir a um programa de jornalismo policial, talvez?). E note que isso não é exclusividade do VT: o Novo Testamento (NT) está cheio de relatos de sofrimentos e "maus bocados" pelos quais passaram os apóstolos.
Se analisarmos a etimologia das palavras que a Bíblia traduz como "sofrimento", chegaremos à conclusão de que a barra era realmente pesada. A palavra em hebraico traduzida como sofrimento/aflição é עֳנִי (onii), derivada do verbo עָנָה (anah) que - de modo geral - significa "ser oprimido", "ser colocado para baixo"; e tem sua origem relacionada à ação de arar a terra. Como comentei no post anterior, o sofrimento duhkah estava relacionado ao desalinho do eixo; já o sofrimento anah está relacionado à sensação de ser arado. Tenso, né? Dessa forma, num contexto cristão do VT, o sofrimento é algo sensível tanto física quanto espiritualmente. É aflição mesmo, no sentido mais profundo da palavra.
No Novo Testamento, uma das palavras mais encontradas para designar sofrimento é πάθημα (pathema), derivada de πάθος (pathos) - mesma raiz da palavra paixão. Pathema difere de pathos apenas por ser um termo mais concreto e específico. Na Grécia Antiga, pathos tinha uma significância tanto positiva quanto negativa, mas no NT é quase invariavelmente ligado à coisas negativas. Seguem exemplos do pathema:
"Considero que nossos sofrimentos atuais não podem ser comparados com a glória que em nós será revelada." (Rom 8:18)
"Pois assim como os sofrimentos de Cristo transbordam sobre nós, também por meio de Cristo transborda a nossa consolação" (2Cor 1:5)
"Ao levar muitos filhos à glória, convinha que Deus, por causa de quem e por meio de quem tudo existe, tornasse perfeito, mediante o sofrimento, o autor da salvação deles." (Heb 2-10)
O pathema grego está, então, intimamente relacionado às emoções. O sofrimento expresso no NT, portanto, tende mais ao sofrimento emocional do que aquele do VT. Isso pode ser compreendido em termos históricos, se considerarmos o contexto em que o povo hebreu surgiu e existiu na época antiga. Era um povo constantemente escravizado, envolvido em batalhas; com uma história banhada a sangue. Sua divindade, portanto, precisava desempenhar um papel guerreiro - era um Deus herói, que ouvia os gritos de dor, que sentia em Si mesmo as aflições físicas do povo-escravo e Se erguia para devastar e destroçar os inimigos.
Na época do Novo Testamento, a cultura judaica estava inserida em um ambiente mais civilizado, e creio que não experimentava tanto derramamento de sangue quanto nos tempos arcaicos. O sofrimento, então, assume uma conotação mais introspectiva: o foco não está nas lamentações do físico, mas do espiritual (não esquecendo aqui, obviamente, da perseguição dos apóstolos da Igreja Primitiva, nem as próprias molestações que Jesus sofreu antes e ao longo da crucificação).
Qual a raiz do sofrimento, para um cristão? Se pensarmos no pathema, poderíamos vislumbrar uma raiz relacionada ao pathos: à paixão, ao apego. Se nos apegamos a algo, se temos um sentimento forte, isso pode nos levar ao sofrimento: sofrimento por não ter aquilo que queremos, e sofrimento por pensar em perder aquele objeto de nossa paixão. Esse tipo de sentimento está intimamente relacionado ao ego. Só há paixão, desejo e apego se há um "eu" para fazer usufruto do objeto do desejo. Nossa própria noção de "eu" se confunde com as coisas que possuímos e às quais nos agarramos: eu sou advogado, eu tenho um carro, eu tenho uma esposa e três filhos, eu tenho uma casa na praia, eu isso, eu aquilo, etc. Quanto mais se tem, mais se tem a perder também e - por consequência - mais sofrimento em potencial. E, também, quanto mais se tem, mais se quer ter, e mais o ego é fortalecido.
Esse conceito de sofrimento devido ao fortalecimento do ego está diretamente relacionado, na teologia Cristã, à separação de Deus. Quando estamos separados de Deus (o que, em última análise, é impossível), nos sentimos vazios e tentamos preencher esse vazio construindo uma imagem de nós mesmos; mas isso nada mais é do que juntar tijolos sobre uma base fraca que invariavelmente vai ceder: quanto mais tijolos, maior o peso a sustentar e, consequentemente, mais estrago fará a queda. Fortalecer o ego é uma armadilha, que não trará nada além de mais sofrimento. Jesus disse (Jo 12:24) "Digo-lhes verdadeiramente que, se o grão de trigo não cair na terra e não morrer, continuará ele só. Mas se morrer, dará muito fruto." E, ainda: "Bem aventurados os pobres em espírito, pois deles é o Reino dos Céus" - 'pobres em espírito' concerne exatamente à pobreza espiritual, que é a realização de que não somos suficientes, porém dependentes e responsáveis uns dos outros e uns pelos outros. Daí implica na atitude de ausência de sentimento de posse, de apego, diante de todas as coisas. Isso é morrer.
Paulo também afirma (Rom 8:13) que "se [vocês], pelo Espírito, fizerem morrer os atos do corpo, viverão." Portanto, é necessário morrer para viver; é necessário morrer para ter comunhão com Deus, em sua plenitude.
Matar o ego: esse é o caminho ensinado por Jesus para das cabo ao sofrimento. É matando o ego que se permite o nascimento do Espírito, que é o amor. O amor incondicional e universal de Deus. E é esse amor que move a vida, e nos faz, verdadeiramente, habitar o Reino dos Céus. :)
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