"A splendid branch issues from the old plum tree;
At the same time, obstructing thorns flourish everywhere."
(Keizan Jokin)*
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Das quatro estações do ano, a Primavera é possivelmente a mais feliz. Para nós, brasileiros, as estações podem ir e vir sem nem percebermos - exceto, talvez, quando começa e quando termina o Verão e precisamos adiantar ou atrasar nossos relógios em uma hora. Na maioria do hemisfério norte, contudo, os Invernos têm neve, as Primaveras têm flores, os Verões têm calor insuportável e os Outonos têm ruas abarrotadas de folhas secas.
Em Tokyo, o frio começa em meados de novembro; e pela primeira semana de dezembro, os termômetros já começam a descer abaixo dos 10 ºC. De dezembro até começo de abril, sair pra fora de casa sem casaco é masoquismo, já que as temperaturas flutuam do subzero aos 15, 16 ºC (max) em dias excepcionalmente quentes. Ou seja, passamos cerca de 1/3 do ano enrolados em roupas de frio e sob aquecedores: dá pra imaginar o quão prazeroso é sair para dar uma volta de camiseta, curtir um vento morno e ver as árvores saindo do seu estado hibernal e começando a florir.
Ciclo dos 24 termos solares asiáticos |
Anteontem (dia 21 de março), celebrou-se aqui no Japão o "Dia da Primavera" (春分の日, shunbun no hi), um feriado nacional. Ele coincide com o que chamamos de equinócio de primavera (ou vernal) no Ocidente. A palavra equinócio deriva do latim aequinoctium, formada pela aglutinação de aequus (igual) e noctium (de noites), sugerindo o dia em que o número de horas do período diurno é equivalente ao número de horas do período noturno. No calendário ocidental, a primavera começa a partir do dia de equinócio vernal; mas aqui no Japão começa um pouco antes. O calendário tradicional do leste asiático é divido em 24 "termos solares", que marcam as principais mudanças na natureza. O primeiro evento do ano é o risshun (ou lichun, em mandarim), 立春, que significa a entrada da Primavera, e geralmente ocorre pelos primeiros dias de fevereiro, bem próximo do ano novo lunar/Chinês. Este evento é astronomicamente definido a partir do dia em que a longitude solar [1] atinge 315º (o equinócio vernal ocorre quando sua longitude atinge 0º), o que em 2014, por exemplo, ocorreu no dia 4 de fevereiro. Tradicionalmente, simboliza o meio do caminho entre o solstício de inverno e o equinócio vernal e representa o dia mais frio do ano: dali pra frente as temperaturas começam a subir gradualmente, conforme a primavera vai se desenrolando. O período que chamamos de primavera compreende, neste calendário asiático, os primeiros 6 pontos, viz. 立春 (entrada da primavera), 雨水 (água das chuvas [2]), 啓蟄 (acordar dos insetos [3]), 春分 (equinócio vernal), 清明 (clareza e brilho [4]), 穀雨 (chuva dos grãos [5]) e termina na véspera do rikka, 立夏, a entrada do Verão (6 de maio).
Já que falamos em Ásia, o ideograma usado por aqui para denotar a primavera, 春 (haru em japonês, chūn em mandarim), é formado por composição semântico-fonética, do seguinte modo: a forma atual é uma simplificação de 萅, que contém o radical 艸 (grama, folhagem) em cima ( 艹 ) e 日(sol) embaixo e o indicador fonético 屯 (lido zhun em mandarim, e que também significa agrupar, juntar) no meio. Portanto, é um ideograma que sugere o nascimento das folhagens e o ressurgimento do Sol.
Já para nós, que falamos o bom e velho Português, nossa "Primavera" tem uma origem não menos interessante e curiosa! No Latim clássico, as quatro estações eram: ver, aestās, auctumnus e hibernum. Em Português antigo, essa divisão dera origem às estações como Verão (nossa atual Primavera), Estio (nosso atual Verão), seguidos do Outono e o Inverno. Este trecho de uma das cartas de Gil Vicente [6] ilustra a separação entre Verão e Estio:
Já para nós, que falamos o bom e velho Português, nossa "Primavera" tem uma origem não menos interessante e curiosa! No Latim clássico, as quatro estações eram: ver, aestās, auctumnus e hibernum. Em Português antigo, essa divisão dera origem às estações como Verão (nossa atual Primavera), Estio (nosso atual Verão), seguidos do Outono e o Inverno. Este trecho de uma das cartas de Gil Vicente [6] ilustra a separação entre Verão e Estio:
"(...) E para que melhor sintam suas pacíficas concordâncias,
todos os movimentos que neste orbe criou,
e os efeitos deles são litigiosos,
e porque não quis que nenhuma cousa tivesse perfeita duração sobre a face da terra,
estabeleceu na ordem do mundo que umas cousas dessem fim às outras,
e que todo o género de cousa tivesse seu contrário,
como vemos que contra a formosura do Verão,
o fogo do Estio,
e contra a vaidade humana a esperança da morte,
e contra o formoso parecer as pragas da enfermidade,
e contra a força a velhice,
e contra a privança inveja,
e contra a riqueza, fortuna;
e contra a firmeza dos fortes e altos arvoredos,
a tempestade dos ventos;
fortuna, sorte, azar
e contra os formosos templos e sumptuosos edifícios,
o tremor da terra,
que por muitas vezes em diversas partes tem posto por terra muitos edifícios e cidades,
e por serem acontecimentos que procedem da natureza não foram escritos,
como escreveram todos aqueles que foram por milagre,
como templum pacis de Roma,
que caiu todo subitamente no ponto que a virgem nossa Senhora pariu."
Pois como foi que o Verão virou Primavera e o Estio virou Verão? Na Roma antiga, o ano começava no mês de março (antes da reforma do calendário em 45 a.C. por Júlio César), junto com a Primavera. Talvez para destacar a celebração da renovação da vida, os primeiros dias da estação eram conhecidos como prīma vera (do plural neutro acusativo de prīmus + ver). Aparentemente, essa nomenclatura acabou sendo adotada ao longo das regiões do vasto império romano e absorvida pelos idiomas derivados do latim. De fato, o termo em Francês reflete esse aspecto de primazia dessa estação, ao chamá-la de printemps, a primeira época. No Português do século XVI, por exemplo, as estações eram Primavera, Verão, Estio, Outono e Inverno, sendo as duas primeiras partes do que hoje reconhecemos como Primavera. O vocábulo latino para primavera, ver, por sua vez, parece ter a mesma raiz do prefixo sânscrito vas-, significando resplandecer, brilhar [7],[8], e há os que digam que é a mesma raíz de verde. Portanto, a Primavera seria a estação dos primeiros esplendores da Natureza; quando ela começa a despertar do estado de hibernação (hibernum) e esbanjar um verde novo, em todo seu esplendor.
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* "Um ramo esplêndido surge da velha ameixeira;
Verso composto pelo mestre Keizan ao lecionar sobre a vida do buda Shakyamuni. O nascimento de Shakyamuni é celebrado em 8 de abril, e coincide com o ápice da Primavera. In: Keizan. The record of transmitting the light [Denkoroku], 1300. Trad. de Francis Cook. Wisdom Publications: Boston, 2003. pg. 31.
* "Um ramo esplêndido surge da velha ameixeira;
Ao mesmo tempo, espinhos florescem por todo lugar."
Verso composto pelo mestre Keizan ao lecionar sobre a vida do buda Shakyamuni. O nascimento de Shakyamuni é celebrado em 8 de abril, e coincide com o ápice da Primavera. In: Keizan. The record of transmitting the light [Denkoroku], 1300. Trad. de Francis Cook. Wisdom Publications: Boston, 2003. pg. 31.
[1] Vide explicação neste link.
[2] Indica a época do ano em que o que chove é água, e não mais neve; e que a neve pode então começar a derreter.
[3] Com o aquecimento da terra, os insetos começam a sair do estado de hibernação.
[4] A Natureza desperta com força, brilho e clareza. É a época em que as flores estão no ápice do florescer, o momento ideal pro hanami.
[5] Os campos de plantação são preparados, e as chuvas de primavera caem para nutrí-los.
[3] Com o aquecimento da terra, os insetos começam a sair do estado de hibernação.
[4] A Natureza desperta com força, brilho e clareza. É a época em que as flores estão no ápice do florescer, o momento ideal pro hanami.
[5] Os campos de plantação são preparados, e as chuvas de primavera caem para nutrí-los.
[6] Carta que Gil Vicente mandou de Santarém a el-rei dom João, o terceiro do nome, estando sua alteza em Palmela, sobre o tremor da terra que foi a 26 de Janeiro de 1531. Disponível aqui. Acessado em 23 de março de 2014.
[7] Entrada de "Primavera", Dizionario Etimologico Online. Disponível aqui. Acessado em 23 de março de 2014.
[8] Sir Monier Monier-Williams. A Sanskrit-English dictionary etymologically and philologically arranged with special reference to cognate Indo-European languages, Oxford: Clarendon Press, 1898, page 930. Disponível aqui. Acessado em 23 de março de 2014.
[8] Sir Monier Monier-Williams. A Sanskrit-English dictionary etymologically and philologically arranged with special reference to cognate Indo-European languages, Oxford: Clarendon Press, 1898, page 930. Disponível aqui. Acessado em 23 de março de 2014.
Primavera... O Japão deve ser absurdamente lindo nesta época. Quem sabe eu não tenha um dia a oportunidade de verificar pessoalmente. Enquanto isso, vivemos cá o outono.
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