6 de ago. de 2010

Um aporte sobre a Realidade

O que é "realidade"? Será que alguém é capaz de explicá-la?

Estudamos o mundo a nossa volta através da ciência: sabemos que matéria é feita de átomos, que - apesar do nome - são constituídos de partículas ainda menores (elétrons e quarks) e uma miríade de particulas subatômicas; e sabemos que calor, luz, ondas de rádio e TV são apenas percepções diferentes de uma mesma essência (as radiações eletromagnéticas). Estudamos tudo isso com bastante afinco, sob o rígido julgo do impávido Método Científico. É sua aplicação que nos diferencia das assim chamadas "pseudo-ciências" - estudos aparentemente sérios mas que não levam em consideração o rigor devido imposto pela metodologia da pesquisa científica, como a imparcialidade dos julgamentos, a amostragem aleatória e os testes cegos de hipóteses objetivas.

As radiações eletromagnéticas são caracterizadas por duas componentes: uma elétrica e uma magnética (daí o nome), e são identificadas por duas grandezas físicas - o comprimento de onda (a distância entre dois picos consecultivos) e a frequência (número de picos por segundo). A energia de uma radiação é diretamente proporcional à sua frequência e inversamente proporcional ao comprimento de onda. As radiações de maior frequência aparecem à direita na figura, e têm um comprimento de onda de dimensões atômicas. Por isso têm maior penetração na matéria e causam maior dano - são os raios gama. No outro lado do espectro aparecem as ondas de rádio, com comprimentos enormes, do tamanho de um prédio! No meio do caminho, em uma estreita faixa de comprimentos de onda, aparece a radiação visível - correspondente àquela radiação que é detectada pelas nossas células oculares e que percebemos como cores: as vermelhas têm frequência (e, portanto, energia) mais baixa e as violetas, mais alta. Logo acima do violeta, surgem as radiações ultravioleta, com maior energia; e abaixo da vermelha, as radiações infravermelhas.

A ciência já nos permitiu (e permite cada vez mais) avançarmos no entendimento do mundo ao nosso redor. Entretanto, será ela capaz de efetivamente dizer o que é esse mundo? Até alguns anos atrás, a linha que separava matéria e energia era bastante clara. Até que nomes como de Broglie e Einstein mostraram que, na verdade, matéria é também energia e vice-versa. A luz, um exímio exemplo de radiação, também pode ser tratada como feixes particulados, com seus fótons de diferentes quantidades de energia - como mostrou Planck lá atrás em 1800 e bolinhas. De Broglie veio provar que essa dualidade também vale para toda matéria no começo do século XX. E agora? Matéria e Energia não eram coisas diferentes?! Pobre Lorde Kelvin! Se ele soubesse a revolução que a "pequena nuvem no céu de brigadeiro" que representava o problema da radiação do corpo negro iria fazer no corpo das ciências, com certeza arrancaria suas barbas de desespero!

O ponto é simples: nós cientistas tentamos dividir e diferenciar o mundo a nossa volta em porções lógicas para conseguirmos estudá-lo apropriadamente. E não há nada de errado nisso. O problema é quando começamos a aceitar nossas divisões como realidade absoluta e suprema. Quando a Mecânica Quântica começou a ser postulada, muitos físicos agarravam-se à visão mecanicista de Newton com unhas e dentes. Tudo bem, não há nada de errado com a Mecânica Clássica: ela só não vale para algumas condições mais específicas, como os mundos moleculares e os de condições extremas, onde prevalecem os efeitos relativísticos. Fora isso, no "mundo médio", é perfeitamente plausível e justificável utilizá-la. Mas, veja, coisas similares acontecem até hoje! Muitos e muitos cientistas agarram-se tão ferrenhamente a ideais e modelos que perdem a chance de se maravilharem com incríveis descobertas e teorias! Precisamos ter em mente que teorias e modelos estão sujeitos a mudanças, e que o que nós sabemos hoje não corresponde exatamente às coisas como elas são, mas são sim conceitos que nós construímos para explicar o que é inexplicável.

Quem pode explicar a cor azul? Ou a sensação de calor? Ou o sabor do chá? Ou a beleza de uma melodia, de uma poesia? Ou o amor?

A ciência pode explicar porque uma cor é azul e como percebemos a cor azul. Pode explicar como as células oculares são impressionadas pela radiação de comprimento de onda entre 450 e 500 nm, emitida pelo decaimento de elétrons, outrora excitados por uma radiação externa, a orbitais de menor energia da molécula (ou íon) cromóforo presente no tal objeto azul. Pode explicar como as células transformam essa impressão em sinal elétrico e como esse sinal viaja quimicamente através de diversos neurotransmissores até o tálamo e a assim por diante no cérebro, até o processamento da imagem e a construção do modelo em nossas cabeças. Mas, mesmo assim, não pode explicar o que é "azul". Por quê?

Apesar de toda a objetividade da ciência, ela não pode nos dar certas respostas porque o mundo que nós experimentamos é subjetivo. Total e completamente subjetivo. O azul que eu enxergo não é o mesmo que você enxerga. Podemos estar no mesmo lugar, mas o mundo que eu ver não será o mesmo que o que você ver. Nossa percepção de mundo é construída no cérebro, e esse processo inclui tantas variáveis quanto puder imaginar nossa vã idéia de infinito. Uma ilha paradisíaca poderia ser o lugar mais feio do mundo se você estiver de mau humor; analogamente, uma tarde de rush na marginal Tietê pode ser o melhor lugar do mundo pra se estar, dependendo das suas condições emocionais. O mundo, esse que nós experimentamos todos os dias, não é mais do que um produto de nossas cabeças. A cor dos seus olhos, o sabor do seu chá preferido, o pôr do sol; nada disso é igual pra duas outras pessoas no mundo.

Nesse contexto, falar em "realidade" parece algo duvidoso. Será que existe alguma realidade independente do nosso subjetivismo? E, mais importante: se existir, será que estaria a nosso acesso? O Método Científico busca justamente eliminar essa parcialidade da visão subjetiva dos estudos, mas não é em todas as áreas que isso sempre é possível. Até hoje não conseguimos, por exemplo, compreender o que é a mente e a consciência, e como isso está relacionado ao construto físico do cérebro. Estudar a consciência de forma objetiva é algo talvez impossível, por isso é tão difícil obter informações cientificamente adequadas sobre esse assunto. O que são os sonhos? Como eles se formam? E as emoções, os desejos, os pensamentos?! Difícil, não é? Por enquanto, essas respostas pertencem ao reino da metafísica (i.e. "além" da física, no sentido de não serem acessíveis por métodos físicos), parte do domínio da grande ciência do conhecimento, a Filosofia.

O filósofo indiano Nagarjuna (que viveu em algum momento entre os séculos II e III) propunha que toda a realidade era, na verdade, vazia. É a teoria do Sunyata, ainda hoje presente em várias escolas do pensamento oriental. Quando Nagarjuna diz que os fenômenos são vazios, ele não está sendo nihilista: a vacuidade de Nagarjuna é na verdade um vazio que contém tudo. (Oi? Não, eu não bebi hoje.) O vazio representa algo que é impermanente e não-conceituável. Nessas linhas, pode-se aproximá-lo à noção taoísta de Tao. A realidade seria, portanto, algo não-conceituável e impermanente, passível de quaisquer diferentes formas de compreensão e percepção. Fazendo uma analogia com a física, é como se a realidade fosse um gás: não conseguimos conceber sua forma até que esteja encerrado em um recipiente definido, como um botijão ou uma caixa. O gás pode ser moldado em quaisquer formas e volumes que desejarmos, dependendo unicamente de nossa ação. Assim é a realidade proposta na vacuidade: ela pode ser moldada em quaisquer interpretação que quisermos, dependendo unicamente de nossa percepção - porque não tem uma "forma" fixa, imutável e permanente. Perceba que não é uma idéia nihilista. Não é um vazio absoluto que nada contém, e sim um vazio que contém absolutamente tudo. Outro dia postei aqui uma interpretação do Sutra do Coração (Hannya Shingyo), que discorre exatamente sobre essa vacuidade de Nagarjuna, e dá uma luz nas implicações que esse pensamento pode trazer à vida cotidiana.

Representação artística do sunyata ("vazio"), conceito filosófico proposto por escolas de pensamento indianas e bastante difundido por Nagarjuna. É um dos conceitos centrais da filosofia budista, tema central dos ensinamentos do buda no que concerne à interpretação dos fenômenos. Essa simbologia é particularmente presente na tradição das escolas do budismo Zen, cuja prática central (o zazen) é baseada na experimentação direta desse conceito através da análise subjetiva não-interagente dos fenômenos (shikantaza zazen), ou de análises subjetivas motivadas (meditações).

Bem, essa é apenas uma das diversas filosofias que tentam explicar o que é a realidade. Existem várias teorias por aí, e aceitá-las ou não é uma questão completamente subjetiva - assim como as teorias em si. Compreendê-las é um verdadeiro exercício mental, e apenas usando o cérebro (ou seja, fazendo experimentos subjetivos) é que se é capaz de julgar a plausibilidade dessas teorias.

Até então a Filosofia é a única ferramenta que pode nos sugerir respostas sobre se há e o que é "A Realidade". Analise as opções e escolha o que te faz mais sentido. Quem sabe um dia nossa ciência física não chega a respostas mais concretas, não é?

Até lá, vamos vivendo e aproveitando nossos mundinhos subjetivos. :)

Um comentário:

  1. Parabéns, Bruno, você conseguiu reunir Ciência e Filosofia num texto harmonioso e muito agradável de se ler. :)

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