25 de set. de 2012

Sílabas!

Os alfabetos silábicos do Japonês - com 46 símbolos cada* - nem sempre foram ensinados da forma como é feito hoje em dia, através de um painel silábico 5 vogais por 10 consoantes inspirado no sânscrito. Em meados do Período Heian (794-1179), por exemplo, surgiu o poema "Iroha" - supostamente escrito pelo grande monge budista Kuukai (空海)**-, composto usando todas as sílabas do alfabeto (um pantograma, portanto) apenas uma única vez, sem repetição. Ei-lo***:


いろはにほへと ちりぬるを
わかよたれそ つねならむ
うゐのおくやま けふこえて
あさきゆめみし ゑひもせす
Na versão contendo ideogramas:

色はにほへど 散りぬるを
我が世たれぞ 常ならむ
有為の奥山 今日越えて
浅き夢見じ 酔ひもせず


Segundo tradução do professor Ryuichi Abe:

Ainda que seu odor continue presente, a forma da flor já se foi
Para quem iria a glória do mundo permanecer imutável?
Ao tocar hoje o outro lado das profundas montanhas da existência evanescente,
Não devemos permitir-nos vagar, intoxicados, num mundo de sonhos rasos.    

Um outro pantograma, datado do século IX, é o ametsuchi no uta (天地の歌, canção do céu e da terra). Apesar de supostamente mais antigo que o poema anterior, sua estrutura é bem mais simples (ideogramas nos parênteses):


あめ つち ほし そら (天地星空)
やま かは みね たに (山川峰谷)
くも きり むろ こけ (雲霧室苔)
ひと いぬ うへ すゑ (人犬上末)
ゆわ さる おふせよ (硫黄猿生ふせよ)
えの枝を なれゐて (榎の枝を慣れ居て)


O Universo e a Terra, o céu estrelado;
Montanhas e rios, picos e vales;
Nuvens e neblina, quarto e limo;
Gente e cachorros, o topo do topo.
Enxofre, macaco, cresça!
Acostumo-me com os ramos de Enoki.


Apesar de extremamente simples, o poema contempla cinco temas - um em cada linha: Primavera, Verão, Outono, Inverno, memórias e paixão; e seu conteúdo é frequentemente utilizado como temática de haikus.


Vale notar a versatilidade que a construção silábica do Japonês permite ao idioma, especialmente quando se considera nessa mistura a capacidade de expressar ideias completas com o uso de um único símbolo através dos ideogramas. Um pantograma em Português, por exemplo, é bem menos poético: "Luís argüia à Júlia que «brações, fé, chá, óxido, pôr, zângão» eram palavras do português."

Talvez poderíamos pensar numa poesia pantogramática em sílabas? Hmm. Fica o desafio. :)

A título de curiosidade, os Chineses também têm suas versões de pantogramas (por incrível que pareça!). Um deles é o Qiān zì wén (千字文, clássico dos mil caracteres) e - como o nome sugere - é composto por mil ideogramas (hanzi, 漢字) sem repetir um sequer. Estruturado em 250 frases de 4 ideogramas cada, essa enorme obra escrita por Zhou Xingsi por volta do século V é utilizada até hoje para ensinar os jovens chinesinhos (e os 白鬼 aventureiros) a aprenderem seu idioma. Aos interessados, fica a dica! 加油!頑張れ! 



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* No poema, são 47. Os caracteres ゑ (we) e ゐ (wi) caíram em desuso, aparecendo apenas em textos mais antigos; e surgiu o caractere ん, que não aparece no poema original (mas normalmente é recitado após a ultima sílaba). O silabário moderno é composto por 48 caracteres (mais 4 marcadores funcionais) escritos em dois tipos de alfabeto: hiragana (平仮名, alfabeto comum) ou katakana (片仮名, alfabeto fragmentado). Ambos são usados para reproduzir os 109 sons do Japonês moderno. Além do hiragana e do katakana, a língua Japonesa também faz uso de ideogramas (ou kanji, 漢字, símbolos com significado per se, ao contrário dos caracteres puramente sonoros dos dois sistemas silábicos) e de letras romanas (romaji, ローマ字).

** Kuukai (空海, oceano de vacuidade) - também conhecido pelo seu nome póstumo Koubou Daishi (弘法大師, o grande mestre propagador do Dharma), (774 - 835 d.C.) - foi um monge, poeta, servidor civil e acadêmico japonês. É considerado como patriarca fundador da escola budista esotérica Shingon no Japão. Apesar da crença popular, especialistas duvidam de sua autoria desse poema, cujo primeiro registro histórico data do início do século X.

*** Para ouvir monges cantando-o: http://www.youtube.com/watch?v=F3MSeUJ35MY. Há quem diga que esse poema foi inspirado no sutra do Nirvana (Supostamente, os últimos ensinamentos do Buda Shakyamuni antes de sua morte):




諸行無常 (Shogyō mujō)
是生滅法 (Zeshō meppō)
生滅滅已 (Shōmetsu metsui)
寂滅為楽 (Jakumetsu iraku) 


Todos os fenômenos são impermanentes:
Essa é a lei do nascimento e morte.
Na extinção do nascimento e morte,
O verdadeiro êxtase da liberdade dos desejos.




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