9 de mar. de 2013

Quack quack!

The sound of ten thousand dharmas
All echoing in small ripples
On the big, boundless, crystal lake

3 de mar. de 2013

Call me by my true names


Hoje, enquanto fazia uma das atividades mais contemplativas do mundo (lavar louça), ouvi um poema do mestre vietnamita Thich Nhat Hanh no podcast do Insight Meditation Center que me chamou bastante a atenção. É um poema escrito nos anos 80, época em que os problemas da fome e das guerrilhas na África conquistavam a mídia. Nas palavras do autor, "esse é um poema sobre três de nós. A primeira pessoa é uma garota de doze anos: um dos refugiados cruzando o Golfo de Sião em um pequeno barco que, após ser estuprada por um pirata, atirou-se ao mar. A segunda é o pirata, nascido em uma vila remota na Tailândia. E a terceira pessoa sou eu. Eu estava muito irritado, claro, mas não podia simplesmente tomar partido contra o pirata: se eu pudesse, teria sido mais fácil, mas não pude. Eu percebi que, se eu tivesse nascido em seu vilarejo e experimentado uma vida similar à dele - em termos econômicos, educacionais, etc. - seria bastante provável que eu também tivesse me tornado um pirata. Portanto, não é fácil escolher um lado. Do sofrimento, escrevi esse poema. Se chama 'me chame pelos meus nomes verdadeiros,' porque eu tenho muitos nomes e, quando me chamam por um deles, devo simplesmente dizer 'sim.'" 


Não digas que partirei amanhã:
mesmo hoje ainda estou chegando.
Olhe bem: a cada segundo estou chegando
para ser um botão num galho de primavera;
para ser um pequeno pássaro, com suas asas ainda frágeis,
aprendendo a cantar em meu novo ninho;
uma lagarta no coração de uma flor;
e uma jóia oculta numa rocha.
Eu ainda chego, para rir e para chorar;
para ter medo, e para ter esperança.
O ritmo do meu coração é o nascimento e a morte
de tudo o que vive.
Sou a libélula, metamorfoseando
sobre espelho d'água do rio.
Sou o pássaro,
que mergulha para engolí-la.
Sou o sapo nadando alegremente
nas águas límpidas de uma lagoa.
Sou a cobra-d'água,
que silenciosamente se alimenta dele.
Sou a criança da Uganda - pele e ossos;
minhas pernas, finas como varas de bambu.
Sou o mercador de armas,
vendendo a morte para a Uganda.
Sou a menina de doze anos,
refugiada em um pequeno barco,
que se joga no oceano
após ser estuprada por um pirata.
E sou o pirata:
meu coração ainda incapaz
de enxergar e amar.
Sou um membro do politburo,
com as mãos cheias de poder.
E sou o homem simples que deve pagar
seu "débito de sangue" ao seu povo,
morrendo lentamente em um campo de trabalho forçado.
Minha alegria é como a primavera: tão quente
que faz flores brotarem por toda a Terra.
Minha dor, como um rio de lágrimas
tão vasto que preenche todos os quatro oceanos.
Por favor, me chame pelos meus nomes verdadeiros,
para que eu possa ouvir todos meus gritos e gargalhadas de uma só vez;
para que eu possa perceber que minha alegria e minha dor são uma coisa só.
Por favor, me chame pelos meus nomes verdadeiros,
para que eu possa acordar,
e que a porta do meu coração
possa permanecer aberta;
a porta da compaixão.

(Thich Nhat Hanh)
--


Don't say that I will depart tomorrow --
even today I am still arriving.

Look deeply: every second I am arriving
to be a bud on a Spring branch,
to be a tiny bird, with still-fragile wings,
learning to sing in my new nest,
to be a caterpillar in the heart of a flower,
to be a jewel hiding itself in a stone.

I still arrive, in order to laugh and to cry,
to fear and to hope.

The rhythm of my heart is the birth and death
of all that is alive.

I am the mayfly metamorphosing
on the surface of the river.
And I am the bird
that swoops down to swallow the mayfly.

I am the frog swimming happily
in the clear water of a pond.
And I am the grass-snake
that silently feeds itself on the frog.

I am the child in Uganda, all skin and bones,
my legs as thin as bamboo sticks.
And I am the arms merchant,
selling deadly weapons to Uganda.

I am the twelve-year-old girl,
refugee on a small boat,
who throws herself into the ocean
after being raped by a sea pirate.
And I am the pirate,
my heart not yet capable
of seeing and loving.

I am a member of the politburo,
with plenty of power in my hands.
And I am the man who has to pay
his "debt of blood" to my people
dying slowly in a forced-labor camp.

My joy is like Spring, so warm
it makes flowers bloom all over the Earth.
My pain is like a river of tears,
so vast it fills the four oceans.

Please call me by my true names,
so I can hear all my cries and my laughter at once,
so I can see that my joy and pain are one.

Please call me by my true names,
so I can wake up,
and so the door of my heart
can be left open,
the door of compassion.



--
(Fonte: http://www.allspirit.com/names.html)

28 de fev. de 2013

Arrivederci

Under the white cassock
A fragile old body
And a burning heart
Exploding love.
A living Christ:
A living Buddha.




26 de fev. de 2013

A kind kind of kindness


Passei alguns minutos lendo o dicionário hoje. Não, claro que não o abri deliberadamente e comecei a lê-lo - creio que ninguém mais faça isso hoje em dia -: fui à caça da etimologia da palavra inglesa 'kindly.' Naquele momento, estava discutindo com um amigo sobre a possibilidade de kind (adj. bom, bondoso, sincero) ter a mesma raiz de kindle (v. embrasar, arder): para mim faria algum sentido que kind e kindle compartilhassem de uma mesma raiz, se enxergarmos bondade como um sentimento de um coração 'quente' (ok, pode parecer meio forçado mas, ainda assim, faria pelo menos um pouco de sentido).

Então, lá fui eu checar a etimologia de kind. Quem conhece um pouco de inglês sabe que kind apresenta dois significados: como substantivo, significa tipo, espécie (e.g. Sci-fi is one of my favourite kind of movies.); como adjetivo, tem os sentidos de (i) generoso, dedicado, que pensa nos sentimentos dos outros (e.g. She's a very kind person.); e (ii) que não causa dano ou perigo, benigno (e.g. Our product is kind to the environment.). Como pode a mesma palavra ter dois sentidos totalmente distintos como substantivo e adjetivo? Será que têm raízes diferentes? 

Ocorre que ambos sentidos originaram-se do mesmo vocábulo do Inglês arcaico, gecynd (significando tipo, natureza, raça como substantivo; e natural, inato, nativo como adjetivo): o prefixo ge- caiu por entre 1150 e 1250, e a grafia mudou de cynd para kind. Eventualmente, por volta do século XIV, o sentido do adjetivo evoluiu de inato para compassivo, benigno. [1]

O que me interessou foi notar uma sutil implicação filosófica disso: talvez compaixão e bondade fossem, então, consideradas qualidades inatas do ser humano. Aparentemente, apesar de a Inglaterra já ser cristianizada àquela época, os povos de lá ainda não haviam incorporado o conceito de natureza pecaminosa do ser humano propagado pela Igreja: St. Agostinho, por exemplo, definia já no século IV que - por causa do pecado original de Adão - toda a Humanidade apresenta-se num estado de depravação por natureza, sendo cada um incapaz de fazer o bem senão pela graça de Deus [2]. A visão de Agostinho, apesar de consolidada ao longo dos séculos pelos concílios da Igreja, não seguiu sem oposição; a mais notável de Tomás de Aquino, no século XIII. (Lutero e Calvino, principais nomes da Reforma, eram adeptos da visão de Agostinho - como, aliás, as igrejas evangélicas modernas fazem questão de deixar bem claro.)

Enfim, sempre simpatizei com os Bretões e seu bom senso; agora mais ainda. :) 

P.S.: No fim das contas, kind e kindle têm raízes diferentes: kindle vem do inglês arcaico cundel (colocar fogo, inflamar) de onde, aliás, também vem a palavra para vela, candle.


--
[1] Vide http://www.etymonline.com/index.php?allowed_in_frame=0&search=kind
[2] Vide http://en.wikipedia.org/wiki/Original_sin#Augustine

White solitude

Over the vast whiteness
Only silence,
The shivering of trees,
And my anxiously beating heart.


12 de fev. de 2013

Satori

Manhã ensolarada num velho mosteiro português. Pedro debruça-se no parapeito da janela de sua pequena cela, enquanto alguns fracos raios de Sol pintam no chão escuro um padrão quadriculado. Há quantos meses estaria ali já? Ele, que passara anos estudando Latim, Grego, Hebraico e Aramaico; relendo textos antiquíssimos e memorizando rituais milenares; ele, que sentia claramente o chamado divino para exercer o sagrado ministério de Cristo, sentia-se só.

Pedro sentia-se só. 

Pedro sentia-se só; e não se tratava daquele tipo de solidão que bate quando se está sozinho: era uma solidão maior, mais profunda - daquelas que poucos conheceram. Pedro sabia que o mundo fervilhava a seu redor: ouvia falar de governos e guerras, dos avanços na Medicina, dos milagres da Ciência; conhecia advogados, bancários, artistas e tinha consciência do vasto leque de possíveis caminhos que cada Homem na Terra encontrava frente a si. E, mais ainda, Pedro sabia que, enquanto esse insano mundo girava, ele estava ali - debruçado em sabedorias centenárias e ritos arcaicos; vivendo uma realidade tão diferente daquela que o resto do mundo conhecia que enchia-se de dúvidas e medos (seria ele seria capaz de compreender aos fiéis e guiá-los, mesmo vivendo em um paradigma tão distinto?). Quanta coisa estaria perdendo? Quantos sorrisos? Quantos abraços, quantos amores? Quanta vida?

(Há noites, ajoelhado em seu oratório, Pedro questionava o propósito de seu chamado. Por que ele estaria ali, vivendo voluntariamente isolado de todos, quando poderia ter escolhido uma vida comum,  algum ofício habitual, amigos e - por que não? - alguma garota bonita em sua pequena cidadezinha do interior? Já revirara os evangelhos sinópticos; já estudara as epístolas paulinas, lera Agostinho, Orígenes, Aquino - até Lutero e Calvino! - e não encontrou as respostas que buscava. Decidira então, talvez como último recurso, rezar.) 

Lá fora, no velho carvalho em frente à janela de Pedro, um sabiá começa a cantar. O jovem seminarista observa encantado, por entre as grossas grades de ferro, o pequeno animalzinho. Lágrimas tímidas rolam de seus olhos e marcam sua batina surrada. Pedro, de repente, esquecera o que é que tanto procurava; esquecera todas as perguntas e todas as respostas que esperava encontrar. Levantou-se lentamente com um sorriso (coisa que, suspeitava, seu corpo havia desaprendido), cruzou a cela e ajoelhou em seu oratório. Nunca havia sentido solidão tão plena.

(Sé do Porto. Porto, 21 de dezembro de 2012)

11 de fev. de 2013