14 de fev. de 2012

Valentim

Fim de tarde. Os bravos grilos começam a sinfonia que há de estender-se por horas noite adentro. A visão dos jardins de Hogwarts fica incrível nessa época do ano: as copas das árvores - cobertas por uma espessa camada de neve - e o gramado todo trançado pelas pegadas dos alunos formam um cenário maravilhoso ao pôr-do-Sol, que tinge toda a paisagem num tom indescritível entre alaranjado e vermelho-sangue.


"Ah, o inverno!" -- suspira o novo professor de Poções, Sr. Brown.


"Já faz tanto tempo que esse lugar faz parte da minha vida, e tanto tempo desde que pisei aqui pela última vez, exatamente nessa mesma época."


O vento sopra com força, fazendo as árvores tremerem e derrubarem parte de sua cobertura alva. Brown fora um dos melhores alunos e monitores da Corvinal, destacando-se especialmente em Poções, quando estudara em Hogwarts, há uma década.


"É, o vento do tempo sopra mais rápido do que somos capazes de perceber."


Pouca coisa havia mudado nos últimos dez anos, desde que o famoso auror Potter, ajudado por membros da extinta Ordem da Fênix, deflagrou de vez o grupo dos terríveis Comensais da Morte, à época liderados pelo grande bruxo das trevas, Tom M. Riddle (conhecido pela alcunha de "Voldemort"), na épica Batalha de Hogwarts. A escola permaneceu fechada por alguns meses para reconstrução e reformulação de seu sistema de ensino, corrompido pela influência do Ministério da Magia - então enraizado por membros dos Comensais. A maioria dos professores optou por continuar lecionando na escola, hoje dirigida pela excepcional Professora McGonagall.


Brown caminha até sua mesa e senta-se lentamente, perdido em seus pensamentos. Olha para uma carta sobre sua mesa e sorri.

"Ah, Mandy! Mandy, Mandy... Bons tempos aqueles, né? Agora ficamos velhos e sérios demais. Éramos tão bobos e tão inocentes que não nos importava o que os outros diziam, as coisas materiais, ou os problemas da vida. Aliás, que problemas? Mas a vida passa, né?" -- Brown passa os dedos devagar sobre a carta.


~~

"Argh, todo ano é esse calor maledeto! Ainda bem que os Trouxas inventaram esse tal ar .. ar .. comissionado? Enfim, esse treco que traz o inverno no meio do verão. Pelo menos não preciso ficar conjurando Invernatio a cada 15 minutos!" -- resmunga a jovem bruxa M. Granger, enviada especial do Ministério da Magia - Divisão de História e Desenvolvimento da Magia - à América do Sul.

"Granger, precisamos ir até o campus de Manacapá, verificar os papiros encontrados pela equipe do Dawner.

"Aaaahh Fields, preciso ir mesmo? Mesmo, mesmo? Ele não pode simplesmente mandar via coruja? Aquele lugar é um inferno de quente, nem Merlin aguenta!"

"Ora, vamos! Pare de reclamar e abrace a maravilha do Sol!!! Além do que, são papiros antiguíssimos! Sabe-se lá o que pode acontecer no meio da viagem. E pense nas pobres corujas, por Merlin!! Voar deeesde lá, nesse calor! Coitadinhas!" -- retrucava Fields, enquanto puxava Granger pelos braços até a porta do escritório. 


Julieta Fields e Mandy Granger estudaram História e Arte Bruxa juntas após Hogwarts. Julieta, como Mandy, era uma proeminente aluna da Grifnória. Agora, ambas trabalhavam em um projeto para identificar como a Magia se desenvolveu na América do Sul bem sob os olhos dos trouxas, que nunca deram atenção. Especialmente nessa época do ano, uma grande festa bruxa é organizada e a magia espalha-se pelo continente.


~~

"14 du Fevrier. Un altre Valentin loins de toi. Nous avons pris cette habitude je pense. C'est la vie, le   destin  , n'est?" -- Brown escrevia num papel, com sua melhor pena. "Mais je ne me plains pas, puisque juste pour savoir que tu es a quelque part, sans et saufs, est sufissant pour garder mon coeur toujour chaude et heureux."

A noite começava a cair em Hogwarts. Já era possível ouvir os uivos distantes dos lobisomens. A pena pára naquele último ponto final, e Brown decide parar de escrever. Levanta-se, veste seu casaco, pega sua varinha de cedro e fibra de asa de Dragão, e sobe até o alto das masmorras.

A Lua desponta solitária no céu, reinando sobre todas as estrelas - opacas frente à sua imponência. Lá embaixo, na Floresta Proibida, os centauros alinhados observam-na em algum tipo de ritual que, com certeza, Professor Walker saberia explicar - mas que Brown não tinha interesse algum em entender naquele momento. Dizem os antigos magos que o entendimento é o pior inimigo da magia: quando entendemos algo, ele torna-se trivial, ordinário, e perde todo e qualquer poder mágico que outrora possuíra. Há inclusive uma lenda no mundo trouxa, que afirma que os seres humanos perderam-se do Paraíso (uma espécie de lugar maravilhoso, eternamente sob efeito do perfectum illusio) quando comeram do fruto da árvore do conhecimento. Mesmo os trouxas, de alguma forma, compreendem esse fato.

"Ah, Lua!" -- suspira Brown. "Há tanta magia em você! Tanta, que até os trouxas chegam a perceber às vezes." 

"Hm, acho que hoje - só hoje - mais um feiticinho não fará muita diferença." -- Brown aponta sua varinha à Lua, concentra-se e murmura: "lepus figura".


~~

"Wah, cansei!" -- resmunga Granger, jogando-se em sua cama. "Aquele lugar é impossível de morar! Não sei como aqueles bruxos conseguiram sentir qualquer coisa além de calor ali."

"Bah, deixe de reclamar, criatura! Valeu a pena ir até lá, não? Aqueles papiros são incríveis! Acho que tem mais informação lá do que em 'Hogwarts: Uma História'!" -- respondeu Fields, empolgada com o trabalho.

"Ah, isso é. Mas, argh. Podia ser um lugar menos quente né?" -- responde Mandy, levantando-se em um pulo da cama. "Vou la fora respirar um pouco de ar fresco."

A noite estava quente lá fora também. Aliás, essa época do ano é quente em qualquer hora do dia, ali onde Mandy Granger estava. O Brasil é um país maravilhoso, e tem bruxos bastante famosos no mundo, mas pouco se conhece de sua história. Mandy estava numa região isolada, quase no meio daquele tórrido país. A vegetação rasteira, em meio à planície, fazia do lugar quase um palco gigante, sob a iluminação das estrelas e, claro, da Lua. Ouvia-se os sons dos pássaros ao longe, mas só. Não havia os uivos dos lobisomens, nem o escândalo do salgueiro lutador, ou o batuque discreto dos centauros - que Granger tanto gostava de ouvir às noites de Lua cheia, como essa. Também não havia neve, nem os farfalhares das corujas em suas jaulas, nem os passos silenciosos de alunos fugidios pelos corredores. Não havia tanta coisa de suas noites de Lua cheia preferidas. Mas havia ela, a Lua. 

"É. O tempo passa, e você continua aí em cima, né, encarando a gente. Você deve ter tanta história pra contar! Gostaria de poder extrair suas memórias e lê-las numa penseira! Com certeza seria muito mais emocionante do que qualquer uma do Beedle, o Bardo. Mas acho que isso não é possível, né? Imagino quanta gente já teria feito isso, se fosse. O máximo que podemos fazer é tentar lê-la: o que será que você pensa? Será que guarda todas as canções, todas as confissões, todos os segredos com você?" -- Mandy pára e tenta encarar a Lua, como quem olha uma obra de arte moderna trouxa e tenta entender o significado daquelas formas tortas e desproporcionais.

"Oh!! O coelho!!!" -- Exclama a bruxa, em voz alta.

[Flashback]

"Hey Mandy, o que você vê ali na Lua?" -- perguntou Nuno Brown, enquanto voavam pelo campo de Quadribol em sua Firebolt.

"Hm? Na Lua? Um monte de manchas!" -- respondeu a jovem Mandy Granger, enquanto abraçava Nuno, sob pretexto de não cair.

"O que?! 'Um monte de manchas'? Onde está sua imaginação e seu romantismo?"

"Ah..." -- retrucou a garota, cabisbaixa. "E você Nuno, consegue enxergar algo lá?"

"Hmm, vou te mostrar." -- respondeu Nuno, enquanto descia a Firebolt, pousando-a em um morro próximo ao campo. "Olhe atentamente para ela. Se você imaginar que aquela bola ali em cima é uma orelha, então você conseguirá ver um coelho! Meio torto, mas ainda assim, um coelho!"

"... um.. coelho. Olha, nem com a imaginação da Lovegood eu conseguiria enxergar um coelho ali! O máximo que eu consigo ver é, talvez, com um pouco de exagero, uma cara de um rato - daqueles de programas infantis de trouxas." -- contestou Mandy, emburrada.

"Um rato?! Poxa, seu romantismo é tocante!" -- disse Nuno, rindo e abraçando a garota.

"Ha - ha - ha. Como se coelhos tivessem algo a mais de romântico que ratos!" -- replicou Mandy, cruzando os braços e fechando a cara.

"É... bem... Mas, convenhamos, poucos animais são menos românticos que ratos! Talvez basiliscos, ou aranhas, ou dragões. Coelhos são animais bonitinhos e simpáticos! Os trouxas até os têm como bichos de estimação!"

"Sim, mas eles também têm ratos como bichos de estimação!!"

"Erm. Bom, os trouxas são seres estranhos, né..." -- retrucou Nuno, coçando a cabeça desconcertado. "Mas enfim! Hoje é uma noite especial, e por isso eu te trouxe aqui! Feche os olhos!"

"Hein? Noite esp... AH! Hoje é o Valentine's Day, né!! Puxa, eu nem me lembrei! Argh, eu PRECISO melhorar esse meu problema com datas! Mas, o que você tem pra mim?!"

"É, é, eu não esperava que você lembrasse. Ano passado você esqueceu nosso primeiro aniversário de namoro, e o MEU aniversário! Mas, enfim, feche os olhos. Maintenant!"

Mandy fechou os olhos, depois de murmurar um "ops!" silencioso. Nuno sussurou algo praticamente inaudível e pediu para a garota abrir os olhos. Em sua frente, no meio do campo de Quadribol, um coelho gigante segurava um rojão, que explodiu no céu e o transformou num enorme coração vermelho com as iniciais dos dois. Enquanto olhava as iniciais desaparecerem lentamente, Mandy olhou novamente para a Lua.

"AH!!! EU VI O COELHO!!!" -- gritou, empolgada.

"Bom, um coelho desse tamanho, se você não visse..." -- replicou Nuno, rindo.

"Não, sua mandrágora! O coelho na Lua! Eu o vi agora!!!"

"Aah! Viu só! É só ter um pouquinho de imaginação que dá pra ver até Merlin lá!"

Os dois riram e ficaram ali por mais um bom tempo, abraçados, ouvindo os sons da floresta, e aproveitando a luz do luar, como se fosse o último dia de suas vidas; e como se não fosse acabar nunca.

[Fim do Flashback]

"O.. coelho.." -- murmurou Mandy, sentindo um sorriso esboçar-se e algo quente escorrendo por seu rosto. "Hein? Estou chorando? Eu, Mandy Granger, chorando?! Devo ter sido enfeitiçada, só pode!"

Mandy ficou ali por um longo tempo olhando para a Lua e rindo sozinha, relembrando de um passado  meio distante, enquanto algumas lágrimas de nostalgia rolavam timidamente, contornavam as covinhas modestas de seu rosto e caiam em seu colo. O som de uma coruja, ao longe, a trouxe de volta o presente. A coruja pousou em seu braço e lhe entregou a carta que viera de Hogwarts. Mandy abriu a carta com sua varinha e, para sua surpresa, ela rodopiou no ar e explodiu, fazendo aparecer um coelho no céu e as iniciais M&N.

"Hahaha. Ai ai, tu é uma figura mesmo, Nuno. Tem coisas que nunca mudam, né?" -- sorria a  garota, enquanto pegava um dos fragmentos da carta que explodira. "'... toujour chaude et heureux.' É, algumas coisas nunca mudam. Você nunca vai aprender que toujours tem um -s no final, né? É uma mandrágora mesmo!" -- ria sozinha a garota.

Lá de cima, a Lua observava calada a história que se desenrolava sob sua face. Cá pra mim, tenho certeza de que, se pudesse, ela estaria sorrindo também. Ou talvez esteja. Se você olhar bem, dá pra ver um sorriso enorme nela. :)



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